Tiago Sousa: “O silêncio é de onde emana tudo”
publicado originalmente a 30/11/2020 na Time Out
Tiago Sousa usou o confinamento para se libertar através do piano. Ouvimos as suas palavras, teclas e silêncios.
Fundador da extinta editora Merzbau, que lançou nomes como B Fachada, Lobster ou Noiserv, Tiago Sousa acabou por seguir um percurso centrado no piano, convidando à introspecção e à meditação. O novo disco, Oh Sweet Solitude, é um regresso ao piano a solo e a formas mais livres e improvisadas de expressão. É música de autodescoberta que se redescobre ao vivo – o próximo concerto está marcado para 2 de Dezembro, no Lux, via Teatro do Bairro Alto.
O primeiro concerto de apresentação deste disco foi no
Theatro Circo, às 11 da manhã de um sábado, devido ao recolher
obrigatório. A tua música é propícia às manhãs?
Foi a
primeira vez que toquei tão cedo. Na verdade, acaba por ir ao encontro
de uma percepção que eu tenho em relação à música que faço, que é uma
música que requer alguma atenção, um estado de espírito mais
contemplativo. Se calhar não é tão propícia ao ambiente noctívago, em
que normalmente os concertos ocorrem. Esses horários ao fim do dia
trazem um estado de espírito diferente, uma percepção um pouco alterada,
por isso acho interessante explorar horários menos convencionais. De
certa forma, fiquei com vontade de repetir.
Referiste a necessidade de atenção para ouvir a tua música. Não gostas que seja usada como ambiente?
A
partir do momento em que faço música e a dou às pessoas, ela deixa de
ser minha, passa a ser partilhada. Eu faço-a com uma intenção, mas
depois a forma como essa ideia se expande e vai readaptando é da
responsabilidade das pessoas e das circunstâncias em que se encontram.
Não é algo que me faça confusão. Eu tenho muita dificuldade em ouvir
música e fazer outra coisa ao mesmo tempo. Há muita gente que comenta
que ouve a minha música a ler, eu seria incapaz de o fazer. Mas as
pessoas são as fiéis depositárias da minha música e vão usufrui-la de
formas que não me passariam pela cabeça. No fundo, o encontro com o
outro e com o estranho é precisamente o motivo que me leva a fazer isto
tudo.
Este disco foi gravado num dia. De que forma te preparaste – já tinhas as pautas definidas ou deixaste fluir?
Este
disco é o culminar de uma vontade de entender melhor a música e a
linguagem musical no seu todo, e de um estudo mais aprofundado dos
compositores de diferentes géneros musicais, sobretudo entre o século
XIX e XX. Senti uma exaustão desse modelo, uma certa incapacidade de
lidar com a música no plano estritamente racional e lógico.
Reencontrei-me com o lado mais intuitivo e improvisativo, que me
acompanha desde o início, e agora sinto que consigo fazê-lo de uma
maneira diferente. Quis pegar numa série de temas, de motivos, pequenas
células que me iam guiar ao longo da peça, mas depois tudo o que
aconteceria nos meandros iria emergir do momento. O respirar da música é
muito orgânico, não tem um respirar matemático, mas para chegar a essa
espontaneidade existe uma preparação bastante grande. Às vezes é preciso
dar uma distância, é preciso usufruir do silêncio, variar a mente, é
uma preparação mais psicológica e mental. Devemos simplesmente tocar e
confiar, não estar num processo de autocontrolo e obsessão com os
detalhes. É aproveitar o que acontece de “errado”, aceitar os acidentes
de percurso para transformar e tornar isso a própria música.
Mencionaste o silêncio. É importante para ti?
O
silêncio é de onde emana tudo. Ao mesmo tempo, tem um lado paradoxal que
é o facto de ser impossível. Por muito que experimentemos momentos de
silêncio, ele nunca permanece. Há sempre um ruído qualquer que emerge.
O bater do coração.
Exacto, há sempre alguma
actividade que se torna evidente. Na cidade temos uma série de ruídos e
sons, e se vamos para o campo parece que sentimos o silêncio novamente.
Mas se passarmos lá algum tempo, já começamos a apercebermo-nos dos
passarinhos, da água que corre, do vento que passa – então o silêncio já
não é silêncio. Só em relação com o ruído é que criamos o silêncio. É
nessa oposição que eu o tento usar, para dar ênfase a um elemento
musical. É nessa dança entre a actividade e a ausência que tudo se
passa. A arte do compositor é encontrar o equilíbrio entre esses dois
momentos.
Como é que a natureza mais improvisada do disco se traduz no palco?
De
forma muito entusiasmante, para mim. O momento de ir para cima de um
palco com uma série de possibilidades em aberto é muito refrescante.
Paradoxalmente, dá-me uma certa segurança, porque antigamente eu ia para
o palco com um grande nervosismo para saber se ia ser capaz de tocar
todas as notas que estavam escritas. E o que senti no Theatro Circo foi o
oposto. O facto de tudo ser possível, a partir de um certo roteiro,
torna o processo muito mais descomplexado e liberto. Dá-me esse gozo e
prazer de redescobrir aquilo que fiz. Nesse aspecto, o concerto é um
momento único, de consumação de todas as coisas que se passam na nossa
cabeça e na nossa solidão.
Este tempo de solidão e confinamento teve alguma influência no disco?
Acaba
por ter uma influência bastante grande. A redescoberta desse tempo de
ócio, em que não se passa nada, é bastante benéfica ao processo
criativo. Já havia dentro de mim a sensação de que precisava de parar
para dar atenção a estas peças que se estavam a esboçar aos poucos, e
foi uma oportunidade meio perfeita para me aventurar de forma diferente.
Essa imprevisibilidade ao início causa perplexidade, mas é algo que
temos que abraçar. A vontade que nós temos de controlar tudo é uma
ilusão que criamos para nos sentirmos mais confortáveis com a nossa
existência meio miserável, meio irrelevante para o grande tempo cósmico.
Essa abertura para dançar com o imprevisto é algo que me ajuda a lidar
com isto tudo. E me ajudou a resolver o puzzle em que estava metido.
Nesta altura há muitos músicos com vontade de desistir da
música. Porque é que é importante, sobretudo agora, a música continuar a
ser um veículo de expressão?
Este momento traz-me a
evidência do quanto a arte, enquanto expressão estritamente humana, tem
tanta importância e tanta validade. Há um episódio histórico da 7.ª
Sinfonia de Shostakovich, de ter sido criada numa Leningrado cercada
pelos nazis. E em Inglaterra, na II Guerra Mundial, as cidades que
tinham sido bombardeadas continuavam a erguer as actividades culturais,
precisamente porque se nós remetermos a vida apenas à sobrevivência, à
manutenção dos nossos sinais vitais, a vida torna-se profundamente vazia
e desinteressante. Esse vazio existencial é tirar a última camada de
razão que temos para viver. São esses momentos que nos trazem o valor de
estarmos vivos e de estarmos aqui todos juntos. É essa comunicação do
intangível e do invisível, que só a arte pode transportar, que nós não
podemos desleixar. Há pouco tempo estava a ouvir uma peça do compositor
Olivier Messiaen que ele escreveu e tocou dentro de um campo de
concentração. Mesmo nessas situações em que estamos expostos ao extremo
da nossa sobrevivência, ainda assim emana esta necessidade de ouvir
música, de ver um quadro ou ver um passarinho a cantar numa árvore. Este
valor estético da vida não pode ser posto de parte – no momento em que
isso acontecer, tudo resvala e tudo se perde.