O piano é sozinho, entre as paredes tortas da cidade. Deslizando por entre as ruas, fortalezas do cinzento-escuro, acariciadoras da solidão e da veemência dos umbigos. O poder das crenças (empíricas e transcendentes) começa a desvanecer e o poder das grandes coisas a cair. E o mundo de olhos no chão. Penetrando-se. Numa relação canibal, incestuosa, vital.
Não se ouve música por entre os caminhos gelados do coração mecânico, dos pulmões de cimento. Não se encontra a melodia. A harmonia está tão longe que se pensa nunca ter existido. O barulho criado pelas vozes viradas sobre si, milhares de almas para cima e para baixo, sobre si, os passos descoordenados de vontades sobre o passeio fétido, sobre o tabaco acabado. Não há senão luzes individuais, de corpos demasiado separados para criar ligação. As paixões estão empacotadas em blocos de apartamentos empacotados. As crianças acumulam-se sobre o ecrã, na vastidão de aparência rosa e sempre tão longe. O leite azedou.
Tiago Sousa arranca o sossego ao serão. Por 32 minutos a vida não é tão asséptica, o sofá é inquietante, as peles voltam aos esqueletos dos animais. O ar é denso, pesado. Cada tecla tem o peso incomensurável do mundo sobre as costas do homem. Tenebroso, ofegante. Escuro. Nebuloso. Sem amarelo, nem verde: o peito corta e a ansiedade vomita sobre os pés. São composições contundentes. Preciosas reflexões sobre a solidão e a sofreguidão dos narizes que se empinam sozinhos, vazios.
O nome, Crepúsculo, pode ter diversas origens, separadas, ou a emersão de um todo eclético: a ironia do presente com a abertura do céu azul à passagem da música, onde o sol permite vislumbrar um tempo vindouro capaz de aniquilar a letargia e a solidão criadas pelas grandes cidades das grandes sociedades de massas, pelos fumos mecânicos da indústria que à hora imergem o mundo num Inverno permanente.
São cinco composições apanhadas entre o piano e os ruídos quotidianos das grandes cidades. De índole extremamente cinematográfica – principalmente das realizações europeias, mais ainda das lusitanas, a lembrar a inevitável banda sonora de Alice. Não é um registo dispensável, de forma alguma, nem ‘a visitar’: há que ouvir, que é um dos melhores a chegar à praça das novas coisas, ultimamente: é intenso. Não é original; a criatividade pode ser posta em causa. Mas é intenso: é orgânico.
Fundador da Merzbau e membro de Goodbye Toulouse e Jesus, the Misunderstood, Tiago Sousa vê aqui a sua estreia a solo, ao piano – oferta da avó. O processo criativo acontece a mediar os novos temas de Goodbye Toulouse. O artista fala numa «peça delicada», que «convida à introspecção e à meditação». Crepúsculo marca ainda o início das edições físicas da Merzbau, lançado em cd-r, em edição limitada (50 exemplares) e numerada em bolsa de cartão, manufacturada.
Hugo Torres