Artigo originalmente publicado no Jornal Mapa
A presente pandemia traduz um aspecto da condição humana que nem sempre estamos dispostos a encarar. A edificação das instituições que fundam a ideia civilizacional vigente pretende proteger-nos enquanto espécie do caos e da imprevisibilidade que os fenómenos naturais emanam. Uma certa dificuldade em lidar com a transmutação e fluidez da vida que tornam a vida humana permeável a forças que não são possíveis de controlar. Esta ideia de que a invenção do Homem tem como finalidade última a criação de um mundo humano diferente do mundo natural está tão enraizada em nós que sempre que uma catástrofe destas ocorre e impõe a sua lógica ficamos desorientados, incapazes de lidar com a vida no que ela tem de mais essencial.
Um evento deste tipo provoca, não só à escala de evento global, de grandeza abstracta, a contagem de milhares de pessoas que padecem de forma perfeitamente arbitrária, uma reverberação muito tangível nas narrativas pessoais de cada um – a súbita percepção de que podemos sofrer da doença ou da cura, tamanho o impacto sobre a economia e a sociedade que esta situação despoletou, lança-nos num estado de espírito que pode variar entre o pânico, a ansiedade ou a depressão, por muito que nos tenhamos habituado a evitar o confronto com estas emoções através de verdades apaziguadoras ou do entretenimento e do consumo.
Naturalmente, este problema não é novo e tem sido tópico de muitas discussões em torno da presença ou ausência do sentido da vida. Este confronto cru e nu com a realidade da vida é um dos tópicos centrais de uma corrente filosófica que a amiúde se chama de Existencialismo. Grosso modo, este termo designa uma atitude diferente daquela que procura a Essência como forma de resolver o problema do sentido – seríamos humanos porque somos seres racionais, ou seríamos humanos porque somos uma invenção divina, ou toda uma panóplia de soluções para a grande questão. Para os Existencialistas, somos os seres que se preocupam com este tipo de problemas existenciais, que se colocam a questão do para quê e do por quê da vida. Somos seres que se edificam a partir das narrativas que surgem a partir deste problema.
Uma pedra não tem forma de articular essa questão, um animal também dificilmente terá, ou pelo menos não encontramos manifestações muito claras disso. A forma como a vida se apresenta enquanto temporal e finita parece ser um traço exclusivo humano. Historicamente, considera-se que nos transformámos na espécie que sabe que sabe (homo sapien sapiens) quando se encontram os primeiros vestígios de ritos que envolvem a morte e a perseveração da memória dos mortos. Uma tentativa de enraizar a vida na permanência e longevidade que dá a origem à civilização e à cultura.
Essa consciência lança todo aquele que se debruça sobre o problema numa enorme angústia. Na sua obra, o filósofo existencialista Soren Kierkegaard remete muitas vezes para o problema da angústia, suas origens e as formas de lidar com ela. Julgo que em momentos de desorientação gritante como aquele que atravessamos poderá ser útil fazer eco dalgumas dessas ideias, a partir, claro está, da minha leitura pessoal, que estou longe de ser um especialista no assunto. Serei antes alguém que se interessa pelo assunto na óptica do utilizador.
Desde já faço outra adenda: a linguagem que Kierkegaard utiliza é sobretudo teológica, mas julgo que esta linguagem serve o propósito de tentar levar estas questões às pessoas que constituíam as elites literatas da sociedade dinamarquesa e europeia do século XIX que o rodeavam. Neste texto, tentarei fazer uma leitura mais secular do tema, apesar de ser algo difícil abandonar totalmente a terminologia.
Para o filósofo dinamarquês, a angústia começa com a tomada de um tipo muito particular de consciência a que chama o modo de ser Religioso. Religioso aqui não é utilizado no sentido estrito relativo às instituições religiosas, das quais Kierkegaard era até bastante crítico, mas como referência a um certo estado de interioridade e de abertura à vida que permite expressar o divino. O divino seria uma relação muito próxima com o Ser autêntico, o Ser que se manifesta antes e depois de toda a conceptualização racional ou ética sobre o certo e o errado e que estaria em íntimo acordo com a existência, os seus paradoxos, as suas angústias e dificuldades.
Primeiro, o indivíduo entra enquanto indivíduo no mundo e desespera. Tem noção da alteridade porque sente a angústia que essa lhe provoca. Existem 3 modos de ser desesperado: o desesperado inconsciente de ser um indivíduo; o desesperado que não quer ser indivíduo; e o desesperado que tenta desesperadamente ser um indivíduo. Em qualquer um destes casos, o indivíduo no estado de desespero, parece-me, é aquele que pretende iludir a angústia e não se encontra disponível para colocar as questões essenciais que precisa de integrar ou resolver.Colocar essas questões significa dar-se conta da dependência do conjunto; da relação que o eu estabelece com qualquer coisa alheia a si mesmo. O que desde logo tem no centro a pergunta sobre se somos animados pelo livre arbítrio ou se as leis da natureza já estabelecem todas as possibilidades.
Ao longo das páginas em que podemos ler sobre este tema, não é apresentada uma resposta fácil para esta questão. Apenas se expõe a relação do indivíduo com essa qualquer coisa alheia como uma tensão entre o infinito e o finito, o temporal e o eterno, a liberdade e a necessidade, colocando a ênfase, parece-me, na própria relação. Nesta forma de se fazer relacionando-se com o que pôs o conjunto da relação, Kierkegaad parece apontar-nos na direcção do caminho que nos leva a que nos realizemos nessa relação – não só enquanto indivíduo, subjectivo e destacado do mundo, mas ao mesmo tempo enquanto estando dentro desse mundo, diluído, participante desse jogo de forças orgânicas cuja natureza dificilmente podemos circunscrever.
Neste processo, a angústia é o elemento impulsionador, pois é apresentada como a vertigem da liberdade. O indivíduo conhece esta vertigem no momento em que a possibilidade se apresenta, e o ser-existencial é este ser-se orientado para a possibilidade. A possibilidade de construir e vir a ser uma série de outras coisas além daquelas que parecem ser possíveis ou razoáveis. O momento que vivemos é cheio de angústia porque, por se apresentar como uma encruzilhada, é um desses momentos cheios de possibilidades. Possibilidade de encontrar novos modos de vida ou de retrocedermos a velhas formas de despotismo e violência competitiva, possibilidade de superar o capitalismo ou do capitalismo se reforçar, possibilidade de reforçar o individualismo e o antropocentrismo, ou possibilidade de reconciliação com a natureza. Se o resultado fosse óbvio, não existiria escolha possível. O facto de ser incerto apela a que tenhamos a ousadia da escolha, independentemente de ser uma escolhaclara, articulada e intelectualmente mediada pela razão. Se Kierkegaard estiver certo, o sentido da existência conhece-se no instante que sucede à reflexão.