Esta força reacionária que atua no seio das massas manifesta-se sob a forma geral de medo da responsabilidade e medo da liberdade. Não se trata aqui de valores moralistas. Esse medo encontra-se profundamente enraizado na constituição biológica do homem contemporâneo. Mas esta constituição não é inata no homem, como acredita o fascista típico: ela resulta da evolução histórica e, por isso, é suscetível de ser modificada fundamentalmente. Não é fácil fazer uma descrição clara e rápida do papel que o medo da liberdade tem desempenhado na sociedade. Talvez seja mais fácil começar por um artigo de James Aldridge, publicado no New York Times de 24 de junho de 1942, sob o título “Aos Britânicos na África Falta o Impulso de Matar”. Passo a citar: O Afrika Corps alemão derrotou o Oitavo Exército porque tinha velocidade, fúria, virilidade e dureza. Como soldados, no sentido tradicional do termo, os alemães não valem nada. Mas o marechal Erwin Rommel e o seu bando são homens furiosos, e de uma dureza que chega ao ponto da estupidez. São viris e rápidos, são assassinos com pouca ou nenhuma imaginação. São homens práticos, trazidos de uma vida prática e difícil para combaterem de maneira prática: são nazis treinados para matar. Os comandantes alemães são cientistas que constantemente experimentam e melhoram a difícil fórmula matemática de matar. São treinados como matemáticos, engenheiros e químicos colocados diante de problemas complicados. Não há arte, não há imaginação. Para eles, a guerra é uma simples questão de física. O soldado alemão é treinado para a
psicologia do batedor temerário. É um assassino profissional, que não perde a cabeça. Acredita que é o homem mais duro que há na Terra. Na verdade, ele quebra facilmente, pois não é tão duro assim, e pode ser vencido rápida e cabalmente por um inimigo que utilize os mesmos métodos expeditivos e
impiedosos… O soldado britânico é o soldado mais heróico do mundo, mas este heroísmo não deve ser confundido com dureza militar. Tem a dureza da determinação, mas não tem a dureza que lhe permita matar cientificamente o adversário.
Esta é a melhor descrição que jamais li do militarismo mecânico. Revela
exemplarmente a completa identidade entre a ciência natural mecanicista, a estrutura humana mecânica e o assassinio sádico. Essa identidade conheceu a sua expressão mais alta e mesmo insuperável na ideologia ditatorial e totalitária do imperialismo alemão. A essa trindade mecânica opõe-se uma visão da vida que não considera o homem como uma máquina, nem a máquina como força dominadora do homem, nem o militarismo como a sua maior glória. Esta visão viva e funcional encontrou o seu último refúgio nas democracias ocidentais. Resta saber se ela sobreviverá ao caos.
Afirmo, embora a minha afirmação possa parecer estranha a um general, que as derrotas das democracias, por mais trágicas e perigosas que tenham sido, foram imbuídas de uma humanidade profunda, diametralmente oposta ao automatismo mecânico: a valorização da vida humana. Aldridge está errado quando censura os chefes dos exércitos democráticos por tentarem poupar a vida humana, ao invés de imitar os robôs humanos. Também está errado quando exige que os combatentes antifascistas
aprendam a matar de maneira ainda mais mecânica, mais automática e mais científica do que os autômatos prussianos. Tentar derrotar tais autômatos recorrendo aos seus próprios métodos é como tentar esconjurar o diabo por meio de Belzebu, isto é, quem o tentar, transformará a si mesmo, no processo de aprender a matar melhor e mais cientificamente, num autômato mecânico, e prosseguirá no caminho iniciado pelos seus
254adversários. Isso significará o fim irremediável das últimas esperanças numa sociedade humana diferente e capaz de viver em paz.
Nossa concepção de luta antifascista é outra. É um reconhecimento claro e
impiedoso das causas históricas e biológicas que determinaram tais assassínios. Só por este processo, e nunca pela imitação, será possível destruir a peste fascista. Não se pode vencer o fascismo imitando-o ou exagerando os seus métodos, sem o perigo de incorrer, voluntária ou involuntariamente, numa degeneração de tipo fascista. O caminho do
fascismo é o caminho do autômato, da morte, da rigidez, da desesperança. O caminho da vida é radicalmente diferente, mais difícil, mais perigoso, mais honesto e mais cheio de esperança.
Deixemos de lado todos os interesses políticos atuais e concentremo-nos numa única questão: como se pôde chegar a uma identidade funcional tão completa entre a máquina, o homem e o assassínio científico? Talvez esta questão não seja relevante para problemas como os de saber se a construção de navios ocorre no mesmo ritmo que os naufrágios ou se a monstruosidade mecânica chegará ou não aos poços de petróleo de
Baku. Não deixamos de levar em conta a importância da questão. É evidente que, se minha casa repentinamente pegar fogo, a primeira coisa que farei é tentar apagar o fogo e salvar o que for possível, entre manuscritos importantes, livros e aparelhos. Mas serei obrigado a mandar construir uma casa nova e, durante muito tempo, irei pensar sobre as
causas do incêndio, de modo a evitar nova catástrofe.
O homem é fundamentalmente um animal. Os animais, porém, distinguem-se do homem porque não são mecânicos nem sádicos, e porque suas sociedades (dentro de uma mesma espécie) são muito mais pacíficas do que as sociedades humanas. Deste modo, a questão fundamental é a de saber o que fez com que o animal humano se deteriorasse e se tornasse semelhante a um robô?
Wilhelm Reich, A Psicologia de Massas do Fascismo